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terça-feira, 12 de novembro de 2013

Ana Francisca: uma vida entre livros



Ana Francisca gostava de ler. Talvez seja demasiado simples enclausurar seu gosto nesta afirmação: gostava de ler. Ana Francisca vivia para ler.
Os afazeres da casa eram colocados em segundo plano: o que lhe importava mesmo era a vida vivida entre as páginas impressas.
O almoço podia esperar, o fim da história não.
O marido, sujeito calmo e compreensivo, tentava lhe facilitar a vida. Apesar de trabalhar na Sorocabana (que depois seria a FEPASA), ainda chegava a tempo de adiantar o jantar.
Ana Francisca reencostada em sua poltrona, olhos fixos no livro e Batista, o marido, lavando o arroz, pondo o feijão a cozinhar, cortando a cebola.
Entre uma folha e outra do alface observava a mulher quieta, toda concentração voltada ao livro.
Por fim, lentamente ela fechava o volume e voltava à vida real, ao jantar real, à família real.
O marido não era de queixumes: nada disso afetava o amor que sentia pela esposa leitora.
Ferroviário, era mais de fazer do que de ler. Apesar disso, frequentava a Biblioteca da Sorocabana, onde ia retirar livros para a mulher. Assim, eram três livros em trânsito: ele emprestava três livros e quando os devolvia, na verdade só os trocava; levava de volta outros três.
E de três em três, Ana Francisca leu a Biblioteca inteira! Não imagino o tamanho da biblioteca em questão, mas deviam ser muitos livros. Tantos, que resolveram prestar homenagem "ao seu mais devotado leitor", o Batista! Sim, o sócio da biblioteca era o marido e como tal, era em seu nome que os livros eram retirados. Conclusão óbvia para os funcionários da biblioteca, tratavasse de um grande leitor. Ledo engano!
E como esclarecer tal mal entendido sem constrangê-lo? Sem revelar que ele não tinha lido uma linha sequer dos muitos livros que retirara?
Foi marcada até uma solenidade para que Batista, o marido que não lia, recebesse uma honraria como o "grande leitor", o exemplo a ser seguido pelos colegas.
Alegando mal-estar (que não era de todo mentira!) escapou-se dessa.
Em outra ocasião, Ana Francisca meteu-se num concurso de contos da famosa marca de produtos higiênicos para senhoras, a Palmolive. Sim, Ana Francisca também gostava de escrever.
O tema: Saudades. Não se sabe o que levavam as linhas que ela traçou, mas acabou vencendo o concurso. Teria portanto, direito a que o prêmio lhe fosse entregue.
Certo dia, uma carro de luxo chega ao seu portão.
Atende uma Ana Francisca desalinhada pela lida doméstica, que bem naquele dia lhe calhou executar.
"- Por favor, Dona Ana Francisca está?"
"- Ah, sou eu mesma!"
Houve um príncipio de dúvida: poderia aquela mulher que ali se apresentava ser a senhora escritora? Sim, era ela mesma.
O prêmio, uma grande caixa de madeira pintada de azul-marinho, cheia de produtos, foi recebido mas, antes que ela pudesse desfrutá-lo (e por razões enigmáticas) ainda ficou exposto por dias na vitrine da melhor relojoaria da cidade.
Uma prima, em certa feita, viu-se em apuros: tinha que deixar um pequeno verso no caderno de lembranças de uma amiga e nada lhe ocorria. E Maysa, a amiga, lhe cobrava a recordação.
Ana Francisca foi em seu socorro e rabiscou o seguinte:
"Culpa tiveste tu, Maysa,
por quereres meu pobre verso aqui.
Mas pouco importa:
numa roseira, entre lindas folhas verdes
é natural haver alguma folha morta".
Quando Ana Francisca partiu, já entrada em anos, deixou em todos a sensação de um livro muito emocionante do qual nunca pudemos ler o final.
Em sua sepultura, os filhos lhe fizeram uma última homenagem: a escultura de um livro com as páginas entre abertas, como a lhe fazer companhia na derradeira aventura.

22 comentários:

Marly disse...

Olá, Rebeca,

Gostei do texto (um conto, na verdade, né? rsrs). Achei-o interessante, instigante na medida e até com um pouco da ironia da vida - o marido 'leitor' que não lia -, rsrs.

Um beijo e vá em frente, que o futuro te acena com boas promessas, rsrs.

Regina Saraiva disse...

Olá Rebeca.

Hoje o que quero e agradecer por partilhar seus textos. Sempre me cativam do começo ao fim, agradam sempre!
Beijo e boa semana

Dalila Pinheiro disse...

Oi rebeca,
que delícia de texto, obrigada por compartilhar!
bjs

Anônimo disse...

Alô Rebeca,
Eu adoro contos ( poesia não consigo ler nem aprecio) e os seus ( penso que vc seja a autora deste) são ótimos. Prende a atenção do início ao fim. Já pensou em fazer uma coletânea? acho que deve considerar isto muito seriamente.
Tem um humor e trocadilhos muito finos nas entrelinhas ( ele se entretém com as folhas de alface, ela com as folhas do livro, vc não diz, mas é subjacente). Grande beijos, e brinde-nos com mais histórias !

M de Maria Ateliê disse...

Oi Rebeca,
Que post gostoso de ler.
Do início ao fim. Parabéns!
Pode escrever por aqui mais e mais.
bjs
Ótima semana!

Obrigada!
Também quis morder os docinhos rs

trapos a voar disse...

Que delícia!!!! Como sempre...

trapos a voar disse...

Que delícia!!!! Como sempre...

Amor em casa disse...

uma delicia de ler, esse conto. Parabéns querida...e como professora q sou tenho q dizer...Continue assim, rs, bjs.

Rosa Paula I Le Paquet disse...

Não sabia que havia uma escritora aqui também! Texto maravilhoso!
Beijos,
Rosa
Le Paquet

Poções de Arte disse...

Que louco!
Isso é real?!?!?
Achei super interessante... o marido devia ter esclarecido tudo, assim ela teria uma homenagem.
Gostei de ler sua postagem.
Abração e lindo dia.

Val disse...

Olá Rebeca,
Não se pergunte mais, vou admitir: sou eu a anônima aí de cima!
Como o meu talento na escrita não chega para uma carta, experimentei a sensação de ser anônima num comentário! Bj, vim reler seu conto...

Simone pinturas e crochês disse...

Boa tarde Rebeca!
Amo seus textos, me prendem do início ao fim, sempre muito inteligentes e encantadores...
Beijos no seu coração!

evelyne-home-interiors.blogspot.pt disse...

Boa noite Rebeca, Bonito texto!! Obrigada por partilhar. Beijos.

Val disse...

Oi EBECA! SABE QUE A BRINCADEIRA NÃO ERA PARA TER DEIXADO VC TANTO TEMPO EM SUSPENSE, MAS AQUI TEMOS MAIS 3 OU 4 HORAS DO QUE AÍ,RESUTADO deixei o comentário como anonima e fui jantar. Pensava voltar em voltar após o jantar para me assumir...mas esqueci! só hoje de manhã quando liguei o comp é que me dei conta disso!
Ainda bem que vc levou para a risada, foi só uma brincadeira mesmo! Beijão.

M de Maria Ateliê disse...

Oi Rebeca,
Ótima quinta e feriadão!
bjs

Paula disse...

Adorei este conto Rebecca!

Amara Mourige disse...

Oi Rebeca,muito bom seu conto!Adorei!
Um lindo final de semana, bjs
Amara

M de Maria Ateliê disse...

Oi Rebeca.
Obrigada pelos horripilantes fofos rs
bjs e ótima semana também!

Unknown disse...

Olá Rebeca!
Obrigada pela visitinha e pelo elogio, rs, adoro!!!
Vim te conhecer e vou te seguir para poder voltar sempre e com mais calma. Adorei o pouco que vi, muito bonito seu trabalho, parabéns!
Excelente semana, bjs

Regina Saraiva disse...

Olá Rebeca,

Obrigado pelo carinho. Que maravilha! Eu tenho dois piscas assim, pequenos também. Já usei na guirlanda, no ano passado usei na decoração da mesa. Já procurei aqui em Brasilia e não encontrei. Quando fui de férias ao Porto procurei na loja da rede onde comprei, mas como era agosto ainda não tinha nada de natal :(, continuo procurando.
Beijos e boa semana.

Claudia disse...

Oi, Rê! Que bacana!!! A primeira vista pensei que você copiava um texto de um livro, depois percebi que o texto era seu (não é?). Amiga, quanta criatividade, fico abismada e feliz com suas postagens, parabéns! Beijos no coração, Clau.

Judy disse...

Adorei!
Se Ana Francisca tivesse lido um de seus contos Batista teria que lhe comprar um tablet!
Beijo,

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